#19. Espaço público na era da hibridização

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#19. Espaço público na era da hibridização

Data:

23

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08

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2025

Autor:

Bruno Costa, Daniel Vilar

Palavras-chave:

hibridização, esfera pública, criação artística
#19. Espaço público na era da hibridização

O espaço público mudou, mesmo que os nossos modelos de pensamento nem sempre o tenham acompanhado. As ruas, praças e jardins continuam a ser territórios fundamentais da convivência social, lugares de encontro, conflito e transformação. Mas, paralelamente, e cada vez com maior influência sobre a vida coletiva, existe uma outra dimensão do espaço público, menos visível, imaterial, algorítmica, mediada por redes digitais e plataformas privadas. É aí que se constroem parte das narrativas, dos afetos e das disputas que moldam a experiência social contemporânea. A esfera pública digital não substituiu a física, mas sobrepôs-se a ela, criando um campo híbrido que não podemos ignorar. A criação artística em espaço público, sobretudo nas artes performativas e nas práticas que intervêm no quotidiano social, tem sido um dos últimos redutos da experiência presencial e do acontecimento irrepetível. No entanto, torna-se inevitável perguntar: estaremos a criar apenas para a rua visível, ou para um espaço público que já não se limita ao chão que pisamos?


Hoje, as dinâmicas da atenção, da participação e da construção simbólica da cidade não se organizam apenas no território físico. Quando uma performance acontece na rua, o seu impacto ultrapassa os limites do tempo e do lugar em que ocorre. O acontecimento não termina; prolonga-se, transforma-se ou dissolve-se nos circuitos digitais, onde é documentado, replicado e reinterpretado. A obra pública, mesmo efémera, participa também de uma ecologia informacional mais vasta, marcada por fluxos algorítmicos que condicionam o que permanece e o que é esquecido. Esta realidade impõe uma nova camada de mediação e, com ela, novos riscos e responsabilidades.


Importa reconhecer que a esfera pública digital é, na sua maioria, gerida por plataformas privadas com lógicas comerciais. Estas plataformas não são espaços neutros: operam através de filtros algorítmicos que determinam o que é visível, o que é amplificado e o que é silenciado. Quando a arte pública depende desses canais para alcançar públicos mais amplos ou para garantir memória, corre o risco de ser descontextualizada, diluída ou moldada segundo critérios que escapam ao domínio artístico. A criação em espaço público precisa, por isso, de repensar o seu posicionamento face a este ecossistema híbrido, onde o corpo e os dados, os gestos e o código, coexistem e competem pela atenção coletiva.


Surge também uma ambivalência crescente nas ferramentas digitais que atravessam o contexto artístico. Tecnologias como drones, sensores, realidade aumentada ou sistemas de captação de dados expandem as possibilidades expressivas e relacionais da criação artística. Mas estas mesmas tecnologias são utilizadas em contextos de vigilância e controlo social. Quando a arte pública incorpora esses dispositivos, ainda que com intenções emancipatórias, pode correr o risco de legitimar, estetizar ou normalizar práticas que comprometem a liberdade, a privacidade e a autonomia dos corpos no espaço comum. Como inovar sem reproduzir mecanismos de poder? Como criar experiências imersivas e sensoriais sem ceder à dependência do dispositivo?


Apesar destes riscos, a era da hibridização também oferece possibilidades férteis. Há propostas artísticas que ensaiam novas formas de presença e ativação, cruzando o território urbano com a circulação imaterial de dados, ou combinando gestos performativos com lógicas de rede. Um exemplo emblemático é o trabalho do artista alemão Simon Weckert, que, ao transportar 99 smartphones ativos num carrinho de mão pelas ruas de Berlim, conseguiu induzir o sistema do Google Maps a assinalar falsos engarrafamentos, alterando virtualmente o tráfego urbano. Esta intervenção crítica, invisível e profundamente eficaz, demonstra como a arte pode interferir nos sistemas algorítmicos que regulam a vida quotidiana, tornando visíveis os mecanismos que moldam a nossa percepção do espaço. Quando bem fundamentadas, práticas como esta revelam caminhos alternativos, capazes de produzir experiências partilhadas entre o visível e o invisível, o local e o global. Mas para que não sejam meras estratégias de visibilidade ou exercícios formais, exigem pensamento crítico, consciência política e um entendimento profundo da complexidade do espaço público atual.


O desafio não é substituir a praça pelo ecrã, nem dissolver a fisicalidade da criação artística. O verdadeiro desafio é compreender que o espaço público da contemporaneidade é feito de múltiplas camadas: o contexto material, o território simbólico, os fluxos digitais e os regimes de atenção. Se a arte pública sempre foi um gesto de ocupação (físico, político e poético), hoje esse gesto precisa de alargar o seu campo de ação, sem perder a ética que o sustenta. A pergunta que importa já não é apenas “como ocupar o espaço público?”. A pergunta urgente será “qual é, hoje, o verdadeiro espaço público a ocupar?”. Responder a essa questão não significa abandonar a rua, mas exige que a arte em espaço público se repense num mundo em que a praça e a nuvem, o asfalto e o algoritmo, pertencem ao mesmo ecossistema de convivência, disputa e possibilidade.


Fotografia: © Simon Weckert


Bruno Costa

Bruno Costa é doutorado em Estudos Culturais pela Universidade de Aveiro e mestre em Gestão das Indústrias Criativas pela Universidade Católica Portuguesa (UCP). A sua investigação centra-se na construção da identidade europeia, com especial foco nos processos de internacionalização de projetos artísticos e na cooperação cultural europeia. É docente convidado na UCP, onde leciona a unidade curricular Parcerias, Redes e Internacionalização nas Indústrias Criativas, e integra os comités de governação da Circostrada Network e da IN-SITU - plataforma europeia de criação artística em espaço público. Como co-director da Bússola, o seu percurso profissional tem-se focado nas áreas da estratégia, planeamento, financiamento e gestão aplicadas ao setor cultural e criativo.


Daniel Vilar

Daniel Vilar é gestor cultural e de marketing, com um foco nas dinâmicas culturais, turísticas e territoriais. É mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Porto e licenciado em Gestão de Marketing pelo IPAM. Como co-director da Bússola e da Outdoor Arts Portugal, o seu percurso profissional tem-se centrado no planeamento e implementação de iniciativas culturais estratégicas e na promoção de cidades criativas, tanto a nível nacional como internacional. O seu trabalho contribui para a definição de políticas públicas, estratégias de comunicação cultural e desenvolvimento territorial. Participa regularmente em conferências nas áreas da estratégia, comunicação, marketing e desenvolvimento regional. Na sua atividade está comprometido com o desenvolvimento estratégico dos projetos culturais e dos territórios em que se inserem.

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