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No início, tudo era vazio e monótono; depois surgiu o Festival Dinamico.
Gostaria que o festival que ajudei a desenvolver ao longo dos últimos dez anos fosse recordado desta forma. Quem já experimentou tanto as alegrias como os esforços concretos de criar, organizar e sustentar um festival desejará, provavelmente, o mesmo; talvez acompanhado de mais alguns meses de férias.
E, no entanto, muitas vezes os festivais e os espaços culturais assumem um papel central numa comunidade apenas para desaparecerem tão depressa quanto chegaram, quando confrontados com os habituais desafios do setor. Quando surgem queixas, raramente se inverte o curso. Ainda assim, se entrevistássemos os residentes, descobriríamos que esses espaços deixaram memórias, sentimentos e práticas indeléveis nessas comunidades. Teremos nós ficado tão habituados a encerramentos e cortes - na saúde, na educação e noutros domínios - que a nossa indignação já não gera ação efetiva? Será a nossa indiferença perante o desaparecimento de polos culturais - e, com eles, a erosão constante dos espaços de encontro público, a menos que se tenha poder de compra para aceder a eles - uma das muitas peças de um mosaico invertido, que retrata a coesão social a desfazer-se em vez de se consolidar?
Devemos perguntar-nos, enquanto profissionais da cultura, porque razão, apesar de termos produzido conteúdos destinados a preencher vazios (de sentido, de espaço, de mercado), nos encontramos hoje num ambiente que raramente terá sido, em tempos recentes, tão hostil à investigação, à pluralidade e à diversidade, ao risco cultural, à educação, à prevenção; a tudo aquilo que deveríamos e desejaríamos representar.
O setor das artes performativas em Itália depende de ciclos de financiamento trienais provenientes do Ministério da Cultura. Na ausência de uma verdadeira lei-quadro, as regras de acesso a esses financiamentos são “recriadas ou reconfirmadas” a cada triénio através de decretos governamentais. Esta falta de estabilidade legislativa reflete a precariedade quotidiana vivida pelos trabalhadores da cultura, confrontados com instrumentos de proteção social injustos que limitam a possibilidade de influenciarem plenamente o seu campo de atuação.
Como a Ateatro, uma das principais revistas digitais nacionais dedicadas às artes performativas, salientou com acuidade: “2025 começou como 2024, que começou como 2023, que começou como 2022… - tudo isto enquanto se espera pelo Código das Artes Performativas”. Este enquadramento legal, há muito aguardado, deveria clarificar as proteções mínimas dos trabalhadores e os critérios de financiamento do setor. Em 2024 parecia estar finalmente ao alcance: houve consultas, grupos de trabalho, promessas de publicação na primavera, depois no verão… e, mais uma vez, nada.
Pior ainda, em vez do tão esperado Código, surgiu um novo Decreto Ministerial que redefiniu o financiamento para 2025-27, funcionando, na prática, como uma lei substituta. Os primeiros resultados e análises revelam três tendências claras:
1. Tradição antes da inovação: a atribuição privilegia uma “cultura que une” (com temas como família, nação, etc.) em detrimento da investigação e da assunção de riscos culturais.
2. Ascensão das métricas de eficiência: as avaliações assentam em valores como o custo por espetador, subestimando largamente dimensões como a sustentabilidade, o impacto social ou a diversidade geográfica.
3. Escassez de recursos: apesar das grandes declarações políticas, não houve qualquer injeção significativa de verbas no Fundo Nacional de Espetáculos ao Vivo (FNSV), limitando a capacidade dos avaliadores de promover mudanças efetivas na distribuição dos recursos.
Enquanto o teatro e a dança contemporâneos têm sofrido cortes de pontuação e reduções orçamentais, o circo contemporâneo não registou descidas significativas (existem alguns casos, mas simplifiquemos por agora). Isto não constitui necessariamente um privilégio, podendo também ser interpretado como sinal de marginalização do setor: afinal, menos de 3% dos recursos públicos atribuídos destinam-se ao circo (incluindo espetáculos tradicionais e itinerantes), enquanto, para comparação, a ópera absorve cerca de 50%.
Mesmo no interior dos próprios circos tradicionais, a tradição reafirma-se. Os circos de escala industrial - virtuosos, com grande afluência e bem adaptados ao mercado - demonstram resiliência (do tipo capitalista) e são, de forma contraintuitiva, recompensados com financiamento público, enquanto as companhias experimentais permanecem nos limites.
E
m agosto de 2025, a afetação final dos fundos ainda não foi publicada. Alguns ajustamentos poderão surgir em função das mobilizações em curso no setor, pelo que o panorama poderá alterar-se rapidamente.
Que papel pode o circo contemporâneo desempenhar nas mobilizações atuais? Talvez a resposta resida precisamente na própria noção de “setor”. Enfrentar falhas sistémicas com as ferramentas do próprio sistema - e seguindo as suas regras - corre o risco de produzir resultados desenhados para proteger o status quo. As divisões setoriais (divide et impera, como alguém diria) entre teatro, dança e circo facilitam uma distribuição de recursos ordenada, mas opaca. Reduzir qualquer área, sobretudo a cultura, a mera conformidade administrativa esvazia-a de sentido: as categorias burocráticas e os atrasos deveriam servir o desenvolvimento, não limitá-lo.
Poderá o circo contemporâneo assumir-se como mediador? Recentemente reconhecido como setor financiável no âmbito do FNSV, tem conseguido, em simultâneo, perseguir o reconhecimento institucional e preservar uma “zona cinzenta” de experimentação, menos sujeita a pressões ideológicas e, por isso, mais livre.
No Festival Dinamico, e em conjunto com outras entidades do circo contemporâneo em Itália, passámos mais de um ano a co-criar um grupo de discussão sobre circo no seio da C.Re.S.Co, uma das principais associações representativas das artes performativas contemporâneas. Este fórum reúne profissionais do circo com pares do teatro e da dança, trazendo “ar fresco” e propostas concretas para reformular os critérios de financiamento setorial.
A reunião do conselho da C.Re.S.Co - a primeira após as novas nomeações ministeriais - teve lugar em setembro, no Festival Dinamico. Um encontro público singular, onde o circo, o teatro, a dança e a academia se reuniram para discutir dados emergentes, por vezes contraditórios, assim como possíveis ações futuras. Há apenas alguns anos, seria impensável que um festival de circo - outrora desvalorizado como mero entretenimento familiar - se tornasse um fórum central para o futuro das artes performativas.
Se o mundo cultural foi apanhado desprevenido pela divisão, é, no entanto, composto por profissionais da imaginação. A atual crise de imaginação - a nossa incapacidade coletiva de conceber um futuro que não seja a “consequência natural” do presente - limita a inovação e amplifica a sensação de impotência perante os desafios sociais e económicos. Os festivais, enquanto espaços de criação artística, de produção coletiva de sentido e de envolvimento comunitário, estão singularmente posicionados para contrariar esta “crise de imaginação”, reforçando a resiliência e lançando as bases para alternativas concretas.
No passado, no presente e no futuro, enfrentaremos sempre novos “vazios” a preencher. Enquanto praticantes da imaginação, o nosso objetivo deve ser preencher esses espaços com conteúdos capazes de devolver-nos ao coração do debate sobre a coesão social, lugar que nos pertence há muito.
Matteo Giovanardi
Investigador cultural e gestor de projetos, ativo em festivais e instituições. O seu trabalho centra-se na inovação através da cultura, na relação entre cultura e saúde e no empoderamento das comunidades. Contribuiu para o crescimento do Festival Dinamico ao longo dos últimos 10 anos e encontra-se atualmente a desenvolver investigação na Universidade Ca’ Foscari.
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