#21. Estar ao centro, sem estar no centro?

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#21. Estar ao centro, sem estar no centro?

Data:

25

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10

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2025

Autor:

Vincent Berhault

Palavras-chave:

descentramento, transversalidade, margem
#21. Estar ao centro, sem estar no centro?

A partir da minha experiência na Maison des Jonglages, situada em Bondy, nos arredores de Paris, proponho uma reflexão sobre os desafios de um centro cultural dedicado ao circo e às artes de rua localizado na periferia, começando por questionar, de forma mais ampla, as relações entre centro e periferia.


Desde os acampamentos nómadas de caçadores-recoletores até aos imensos aglomerados designados como arquipélagos metropolitanos, as noções de centro e periferia têm sido frequentemente utilizadas para analisar a estruturação das sociedades humanas. Estes instrumentos conceptuais, amplamente difundidos desde o século XX, não só traduzem a realidade, como também se tornam modelos visuais persistentes, imagens mentais coletivas que contribuem objetivamente para a construção das realidades urbanas. Uma intuição, assente em realidades objetivas e na experiência vivida, leva-nos a pensar as relações entre centro e periferia como realidades atravessadas por relações de dominação e desigualdade. Através das suas práticas culturais, do seu modo de vida e dos seus valores simbólicos, o centro exerce uma forte capacidade de atração. O apoio político e económico de que beneficia reforça o seu prestígio e influência.


Contudo, as realidades históricas, culturais e geográficas são diversas, e as lógicas de polarização em constante mutação fazem com que as zonas de influência e de poder deslizem regularmente de um espaço para outro. Além disso, a globalização e as revoluções digitais vieram baralhar as cartas, oferecendo a múltiplos pontos a oportunidade de tornar-se centros, de serem particulares, atípicos e únicos. No século XXI, as tensões entre o local e o global, o real e o virtual tornaram-se constitutivas das atividades humanas, e os projetos culturais são igualmente afetados por estes antagonismos estruturantes.


Tradicionalmente centralizada, a França iniciou no século XX um processo de descentralização, delegando poderes e competências a subdivisões administrativas complexas. O desenvolvimento de um espaço cultural na periferia é coerente com essas políticas de descentralização, mas continua, ainda assim, confrontado com o poder real e simbólico do(s) centro(s). A cultura dominante dos centros continua a influenciar as periferias, enquanto a que emerge nas margens oscila entre transformar-se num novo centro ou afirmar uma identidade própria, para além da dicotomia dominação/dependência.


Então, na periferia, deveremos sonhar em estar ao centro, sem estar no centro?


Façamos um ligeiro desvio semântico da palavra periferia para a noção de margem. A margem remete simultaneamente para as ideias de minoria, alteridade e exclusão, bem como para distância e diferença. Agir na margem significa muitas vezes inventar uma identidade própria, criar as condições para o surgimento do novo e, talvez, emancipar-se dos esquemas de dominação pré-existentes. Embora teórica em aparência, esta abordagem estabelece fundamentos filosóficos, morais e políticos para um projeto cultural situado na periferia urbana.


De forma mais concreta, observemos as faces visíveis do iceberg. Consideramos que um centro cultural localizado na periferia deve assumir uma postura de descentralização ativa. Face às fraturas ideológicas, socioeconómicas e culturais, é essencial trabalhar em proximidade com os habitantes. Para além do espaço físico, as ações espalham-se em rizoma pelo território, onde as artes do circo e as artes de rua, de natureza lúdica e intergeracional, permitem que os habitantes se apropriem mais facilmente dos espaços e das atividades.


Construímos colaborações com estruturas locais: casas de bairro, creches, escolas, bibliotecas, associações desportivas, estruturas médico-sociais, públicos sob tutela judicial, entre outras. Acredito também que a transdisciplinaridade é essencial para levar o circo e as artes de rua a lugares onde habitualmente não são esperados. O cruzamento com estéticas apreciadas pela juventude, como as artes urbanas ou digitais, facilita os encontros, surpreende o público local e dinamiza o campo disciplinar, por exemplo, através do diálogo entre malabarismo e slam, foot freestyle e hip-hop, bartending em escolas de hotelaria, malabaristas autodidatas em escolas técnicas, ou ainda circo e saúde, entre outros.


Para além das ações culturais e artísticas no território, a Maison des Jonglages também programa espetáculos, nomeadamente através da organização do festival Rencontre des Jonglages. A proximidade com os habitantes favorece a mobilização: o evento parece-lhes familiar, pois já assimilaram os seus códigos estéticos e o seu sentido. Ao programar e apresentar obras de qualidade, o festival atrai igualmente públicos mais urbanos e gentrificados, que partem “à aventura” para a periferia. O festival é também fruto de coprogramações com cerca de quinze parceiros, situados tanto na periferia como em Paris. Esta sinergia alimenta um processo de descentralização em que o centro se torna apenas um ponto entre outros num rizoma cuja gravidade se ancora na periferia.


Em síntese, alguns elementos parecem-me essenciais para um projeto cultural viável na periferia: praticar a arte do “descentramento”, jogar com as escalas de valor simbólicas e territoriais, surpreender o poder político modificando os fluxos habituais entre periferia e centro, estabelecer colaborações estimulantes, e manter a convicção de que a cultura é indispensável, mesmo quando as necessidades básicas permanecem amplamente por satisfazer.


Conscientes da multipolarização do mundo e dos limites de uma postura excessivamente eurocêntrica ou culturocêntrica, como pensar e praticar melhor o “descentramento” senão através de projetos culturais cuja identidade se constrói nas margens do coração das nossas sociedades?


Fotografia: © Tomas Amorim.


Vincent Berhault

Autor, encenador, intérprete e diretor da Maison des Jonglages, reconhecida como “Scène Conventionnée” pelo Ministério da Cultura francês, Vincent Berhault trabalha no campo do circo contemporâneo há mais de 25 anos. Como fundador e diretor artístico da companhia Les Singuliers, tem conduzido a produção e criação de numerosos projetos em França e no estrangeiro. Formado originalmente como malabarista, desenvolveu obras em que corpo, objeto, música e texto se entrelaçam intimamente. Licenciado em antropologia e relações internacionais, iniciou projetos criativos transnacionais, nomeadamente com a Turquia. Em 2017, encenou a peça Entre, centrada nas temáticas do exílio e das fronteiras. Paralelamente, desenvolve investigação em torno das relações entre arte e ciência, considerando essas trocas um estímulo à criatividade artística. Neste contexto, é desde 2019 artista associado ao laboratório IREMAM (Instituto de Investigação e Estudos sobre o Mundo Árabe e Muçulmano). Ao colocar as suas diversas competências ao serviço da Maison des Jonglages, trabalha para promover e desenvolver este projeto singular na Europa, apoiando uma abordagem transversal onde o malabarismo se cruza com outras expressões artísticas, com o desporto e com a ciência. Vincent Berhault é igualmente co-presidente da rede profissional Territoires de Cirque.

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